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Entre a árvore e o asfalto: o que a sociedade não vê
*Mary Celina Ferreira Dias
Em Nova Andradina, uma reportagem recente trouxe à tona a história de um homem que, em condição extrema de vulnerabilidade, encontrou refúgio em uma árvore. A narrativa adotada pelos meios de comunicação recorreu ao termo “morador de rua”, expressão que, mais do que descrever, cristaliza uma ideia equivocada, e aqui afirmo a rua não é morada, é passagem.
A antropologia urbana e os estudos sociais têm demonstrado que o uso de certas categorias linguísticas não é neutro. Palavras carregam significados, reforçam estigmas, delimitam visibilidades e instituem fronteiras entre quem pertence e quem é relegado à margem. Chamar alguém de “morador de rua” significa, implicitamente, naturalizar a exclusão, como se a rua fosse um espaço legítimo de habitar. Ao contrário, estamos diante de pessoas em situação de rua; sujeitos cujas trajetórias foram atravessadas por processos de despossessão, desigualdade estrutural e abandono institucional.
O homem que agora habita provisoriamente uma árvore não é apenas um caso isolado ou pitoresco, mas o retrato de um corpo que se recusa a desaparecer completamente diante da indiferença social. Sua presença desloca o olhar, força a cidade a confrontar aquilo que prefere ignorar. Não se trata de romantizar a sobrevivência, mas de reconhecer que há vidas que permanecem invisíveis até que, por circunstâncias extremas ou curiosidade, tornam-se notícia.
A árvore, nesse contexto, torna-se mais que abrigo físico. É símbolo de um paradoxo, a busca de dignidade em meio à negação da própria cidade como espaço de pertença. Enquanto o asfalto organiza fluxos, consumos e identidades normativas, os galhos oferecem aquilo que a sociedade lhe negou — um lugar, ainda que provisório, onde existir.
Ver esse homem é também reconhecer a estrutura que o torna invisível. A sociedade precisa deslocar sua linguagem, mas sobretudo seu olhar; não há “moradores de rua”; há cidadãos em situação de rua, sujeitos cuja humanidade não pode ser reduzida à condição precária em que se encontram. A rua não é casa; é trânsito. E, nesse trânsito, muitos seguem passando diante de nós sem nunca serem, de fato, vistos.
Convido você, leitor, a refletir - que responsabilidade coletiva assumimos quando a cidade naturaliza a invisibilidade de quem vive em situação de rua?
A invisibilidade não é um acidente, é efeito de arranjos sociais, linguagens e políticas que deslegitimam o direito à moradia e à visibilidade pública. Olhar para esse homem na árvore é convocação, para nomear com precisão, ver com cuidado e repensar práticas que permitem que vidas se tornem “passagem”.
*Bibliotecária da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Mestre em Antropologia pela UFGD. Doutoranda em Psicologia pela UCDB
Este texto, não reflete, necessariamente, a opinião do Jornal da Nova.
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